Várzea da Pedra era uma vizinhança de umas oito famílias espalhadas a uma distância de meia légua uma das outras, na margem esquerda do Córrego Salobro. O nome certamente foi dado por algum pau rodado que por lá passou, antes que alguém se estabelecesse naquele oco de mundo. É que o ribeirão, sempre muito bem comportado na estiagem, quando batiam as primeiras trovoadas nas suas cabeceiras, esquecia os bons modos de aguinha obediente às curvas que a natureza lhe deu e cismava de encobrir todo baixio que encontrasse. Aquilo, umas oitenta braças de cada lado, ele parecia querer matar afogado todo assa-peixe e mata-pasto existente. Até mesmo a pedra grande, a poucos metros da aguada do Antero, ficava debaixo daquela água barrenta semanas a fio, que chuva era um destempero.
Oito famílias, isso era no dia-a-dia dos currais e das capinas. Mas tinha lá uns tantos dias no ano que era gente que bobo não contava. Era só correr a notícia de um pagode no João Rosa que chovia gente dos quatro cantos. Nas jantas de folia no Oripinho era um Deus nos acuda. Dava pra contar uns cinquenta animais de cela amarrados cerca a fora e outros tantos no barracão do curral.
Em toda a redondeza, abaixo de Deus o povo contava mesmo era com as benzeções e os chás de Dona Liduina. Toda criança que nascia naquela beira de córrego também era aparada pelas mãos dela. Para coisas mais graves como encanar um braço quebrado, mandavam chamar o Olímpio Ferreira, do outro lado do Salobro. E que ninguém quebrasse nada durante as águas. Vau o córrego não dava e pinguela não parava uma.
Dona Liduina era a mulher do Antero. Com uma renca de filhos moravam perto de uma das baixadas ribeirinhas. Numa tarde de sexta-feira, que é o dia preferido das benzedeiras, desde que antes do pôr-do-sol, Dona Liduina foi atender o chamado de uma vizinha dessas de meia légua, que estava acamada. Enquanto isso chegou em sua casa uma outra vizinha com um filho para ela benzer. O caso é que o menino andava chorando muito e se queixando de uma doraiada sem fim. Chegava até a desmaiar de dor. Com isso a mãe, Dona Gertrudes, atrasava todo o serviço da casa vigiando se não haveria de ser nó nas tripas ou algum verme bravo. Numa dessas sapitucas do filho ela conseguiu despachar a bóia para o marido na roça já com as galinhas alardeando o produto daquele dia. O jeito então foi procurar Dona Liduina.
Na ausência da mãe benzedeira, o filho mais velho, Limírio, que nunca aprendeu nem um Pelo Sinal, fez as honras da casa.
– Entra Dona Gertrudes.
– Carece não sô Limiro. Só vim sabê da sinhora sua mãe. Precisava dela benzê o pobre desse minino. Deve estar com espinhela caída. Vive só chorando pros canto.
Nisso Limírio, que era do olho limpo nos negócios, de tanto levar manta nas gambiras com os ciganos que por lá arranchavam, fez valer sua manha de bom observador. Deu uma olhada de esguelha no menino, com os olhos mais fechados que abertos, e já fez o diagnóstico.
– A senhora entra, que mãe já vem. É uma hora, quando muito. Agora, se a pressa for muita, eu que já aprendi umas rezas com mãe, posso fazer uma primeira benzida. Assim o menino já vai tintiando e, noutro dia, com uma benzida mais forte de mãe ele caba de sarar, num tá certo?
Dona Gertrudes pensou ir num pé e voltar no outro, por isso aceitou a oferta do rapaz.
– Deus ponha virtude sô Limiro. Nesse negócio de binzição o que manda é a fé.
Limírio foi logo esclarecendo que não sabia benzer na presença de outras pessoas. Carece muita concentração. Mas a mãe, devido à precisão, não se opôs. O benzedor pegou então no braço do menino e o levou lá para o fundo do quintal, cortou com o canivete uma boa vassoura curraleira e passou a fazer severas ameaças.
– Seu pestinha, vou te dar uma surra, que é o que mais tá merecendo. Ocê que num trata dos porco do seu pai direitinho não pra vê. Ocê num vai parar com essa choreira não, seu porqueira? E tomara eu ficar sabendo que ocê num qué mexê o tacho de sabão da sua mãe.
As ameaças eram sempre acompanhadas de gestos alongados de descer a vassoura bem perto do espinhaço do pobre menino, já tremendo feito vara verde.
Terminada a fervorosa oração, voltou com o menino lá para o alpendre da casa onde estava a mãe e ainda franqueou a ela:
– Eu acho que ele já vai tê uma miora boa. Agora, se ele inda tivé uma requeima, daqui a uns trêis dia eu quero vê ele de novo. Em certos caso mais incroado é sempre bom dá um reforço (isso ele já falou dando uma olhada com o rabo do olho no menino). Num tá certo Dona Gertrudes?
Aquela recomendação soou como uma bomba no ouvido do recém-benzido. Tanto que o pobre coitado virou uma seda em casa. Desde antão, a todos que perguntam pelo filho perrengue Dona Gertrudes conta o acontecido e sempre arremata:
– Foi memo qui tirá com a mão!
A novidade é que, no dizer daquela mãe, sempre bendizendo a Deus pelos pendores espirituais de Limírio, Várzea da Pedra, que já tinha uma benzedeira, daquele dia em diante passou a ter também um benzedor.
Jadir de Morais Pessoa
Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP
Professor Titular na UFG
jadirpessoa@hotmail.com
(Publicado no Jornal O Popular/Campo, de 3 a 6 de maio de 2010)
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Profa. Ms. Neide da Silva Campos
Núcleo de Estudos sobre Corpo, Educação e Cultura - COEDUC/UNEMAT
Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação - GPMSE/UFMT
"Não quero faca nem queijo, quero é fome. Porque se eu tiver faca e queijo e não tiver fome, não comerei. Mas se eu tiver fome, irei à procura da faca e do queijo". (Adélia Prado)
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